terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Em Deus

                             Quando tudo parece estar bem
                        Surge no horizonte uma nuvem escura,
                        Sinal de tempestade.
                        A gente se recolhe
                        Se esconde da vida
                        E o coração fica bem pequenininho.

                        Cai a chuva num rompante
                        As enxurradas soluçam
                        O tempo se esfria;
                        Dá por dentro a velha, amarga sensação
                        De que estamos sózinhos.

                        Mas... quando tudo parece estar mal
                        E nos recolhemos,
                        E em Deus nos achamos,
                        Nele confiamos,
                        Aí é que surge a resposta
                        De que a vida é sempre um recomeço.





segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O IDIOTA – F. DOSTOIÉVSKI – 1967

                                       
                                       Casa onde Dostoiévski escreveu "O Idiota"
                                                    Imagem: Wikipédia
              
Categoria: romance
Idioma original: russo
Tradução: José Geraldo Vieira
Páginas: 628
LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA

Leitura realizada entre os dias 12 de julho e 05 de setembro de 2011.

            O romance "O Idiota" de Dostoiévski, segundo o próprio autor, foi penoso e odioso escrever. Escrito sob intensos problemas, dentre eles a falta de dinheiro e profundas crises de epilepsia, o livro trata da história de vida dum príncipe russo que invariavelmente sofria de ataques epiléticos. O príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin havia passado um bom tempo fora da Rússia, mais de quatro anos, em terras suíças fazendo o tratamento de sua moléstia.
            A história tem início dentro dum trem que, chegando a São Petersburgo, traz passageiros vindos do estrangeiro, mas acima de tudo, passageiros pobres vindos à cidade a negócios. É uma história que realça bastante as tradições russas da época de Dostoiévski, discorre sobre as práticas das famílias nobres, os usos das mulheres no trato com os homens e o preconceito reinante, no que diz respeito às regras para o casamento, o relacionamento entre amigos e etc.
            Talvez, dentre tantos aspectos interessantes que possamos depreender do livro, o que nos fale mais ao espírito seja a coragem do escritor em fazer-se representar no personagem principal da obra, pelo menos no tocante à doença vivenciada pelo príncipe. Fica transparente o modo como as pessoas desprezavam aqueles que sofriam de epilepsia, o que no livro será apresentado como idiotia. O idiota é retratado como um imbecil estúpido que tem dificuldade para entender as coisas, um amalucado a quem nem sempre se pode cobrar comportamento a altura dos ditos "normais". Por isso algumas vezes a gente percebe o tom de ironia de seus interlocutores sussurrando por entre dentes um "quem sabe o senhor não possa entender isso" ou "na sua condição talvez não fique muito claro" e etc. Há, muitas vezes, à margem do real comentário expedido, uma veiazinha de intolerância, uma nota sutil de impaciência para com a inteligência do príncipe.
            Por outro lado sobejam motivos no livro para considerar o príncipe superior aos outros em muitas ocasiões. Ele parece ser mais arguto do que todos na compreensão da vida, muito mais humano no trato com as pessoas, bem melhor de lidar, mais caridoso e inteligente na forma como se expõe em discussões públicas, e no modo como emite suas opiniões. É possível que eu esteja errado no modo como compreendi as finalidades do livro, mas pareceu-me que Dostoiévski pretendia dar o troco à sociedade inescrupulosa e preconceituosa de sua época.    

Índice Geral
Dostoiévski e "O Idiota"
Págs XI a XXI

Primeira Parte – Págs. 1 a 184
Segunda Parte – Págs. 185 a 331
Terceira Parte – Págs 332 a 466
Quarta Parte – Págs. 468 a 628

Primeira Parte (subdividida em 16 capítulos)
Capítulo 1 – O príncipe Míchkin se encontra no "Rápido de Varsóvia" com Rogójin, aquele que seria doravante seu amigo, se bem que também seu principal rival na conquista do coração de uma mulher. Míchkin revela a causa de sua saída do país, ou seja, o problema da epilepsia.
Capítulo 2 – Míchkin chega no apartamento do general Epantchín.
Capítulo 3 – Míchkin trava conhecimentos com o general Iván Fiódorovitch Epantchín. Juntos falam sobre a jovem Nastássia Filíppovna.
Capítulo 4 – Descrição das filhas do general e alusão à condição de vida da jovem Nastácia Filíppovna.
Capítulo 5 – O príncipe Míchkin é recebido pela esposa do general, a senhora Lizavéta Prokófievna, e conta a ela e a suas filhas os estranhos acontecimentos de uma execução na cidade de Lião.
Capítulo 6 – Míchkin conta acontecimentos da cidade onde havia morado e suas experiências com crianças. Cita a história comovente de uma moça chamada Marie, adotada pelas crianças do povoado onde ele morara.
Capítulo 7 – O príncipe acaba se envolvendo, sem querer, numa confusão amorosa vivida pela filha mais moça dos Epantchín, Agláia Ivánovna, e um funcionário do pai dela, Gavríl Ardaliónovitch.
Capítulo 8 – Míchkin, por não ter onde ficar, acaba aceitando a hospitalidade estranha do recém conhecido Gavríl Ardaliónovitch, também conhecido por Gánia.
Capítulo 9 – Após uma série de acontecimentos surge em cena, na casa de Gánia,  Nastássia Filíppovna, mulher de incrível beleza e extrema ousadia. Hoje chamaríamos de liberal ao extremo.
Capítulo 10 – A casa de Gánia recebe, inesperadamente, a visita de mais um personagem, Rogójin.
Capítulo 11 – Rogójin revela suas intenções para com Nastássia Filíppovna na casa de outras pessoas.
Capítulo 12 – Míchkin dialoga com o irmão de seu benfeitor Gánia, ou seja, Kólia, um menino esperto e observador.
Capítulo 13 – Descrição de um estranho jogo proposto por Nastássia. Todos devem contar uma história pessoal na qual figure ações passadas lamentáveis. Só valem as histórias que revelem a perversidade do narrador.
Capítulo 14 – Tótskii, amante e protetor até então de Nastássia Filíppovna, participa do jogo estranho. O príncipe Míchkin mais uma vez se envolve numa confusa questão de casamento.
Capítulo 15 – Rogójin surge em meio à reunião disposto a arrematar o corpo de Nastássia Filíppovna por certa soma de dinheiro. Rogójin é apaixonado por ela e faz de tudo para possuí-la, mas é apresentado pelo autor como indivíduo de má índole e inescrupuloso.
Capítulo 16 – O príncipe Míchkin descobre e revela a todos ser portador de uma bela herança. Gánia, que também pleiteava a mão da bela moça, é humilhado por ela e descrito como alguém que por poucos rublos é capaz de vender a própria mãe.

Segunda Parte (subdividida em 12 capítulos)
Capítulo 1 – O príncipe Míchkin viaja para Moscou a fim de receber sua herança. Estranhos rumores sobre sua vida com Nastássia Filíppovna são propagados em São Patersburgo. Sabe-se que os dois haviam se encontrado em Moscou.
Capítulo 2 – Míchkin volta para São Petersburgo e vai morar na pensão de um senhor Liébediev. A loquacidade de Liébediev é posta à prova.
Capítulo 3 – Míchkin visita a casa de seu rival Rogójin. Há no ar uma certa violência camuflada. Ambos conversam sobre a bela Nastássia.
Capítulo 4 – Míchkin e Rogójin fazem um pacto de irmãos.
Capítulo 5 – Míchkin sofre um ataque epilético enquanto percebe, se bem que de modo obscuro, a figura de Rogójin tentando assassiná-lo com uma faca. Nesse momento o rosto se deforma horrivelmente, de modo particular os olhos. Não só o corpo inteiro como os traços do rosto trabalham com sacudidelas convulsivas e contorções. Um terrível e indescritível grito, que não se assemelha a cousa alguma, é emitido pela vítima... é como se um outro ser estivesse gritando dentro do homem (Pgs. 241/242).
Capítulo 6 – Míchkin, convalescente do ataque epilético, recebe a visita da senhora Epantchín e suas belíssimas filhas. Liébediev, o intérprete do Apocalipse.  
Capítulo 7 – Agláia, uma das filhas da generala, lê um poema e, por meio dele, faz velada alusão à importância do príncipe para com ela. Kólia, o garoto amigo do príncipe, parece sempre estar por perto.
Capítulo 8 – Míchkin recebe a visita de alguns jovens que, parece, querem se aproveitar da ingenuidade dele para levar um pouco do dinheiro que ele havia recebido de herança. É lido um texto infamante a respeito do príncipe e a generala fica furiosa diante da passividade dele frente a seus visitantes.
Capítulo 9 – Gavríl Ardaliónovith, agora transmudado desde a vergonha da recusa de Nastássia Filíppovna, aparece como advogado em prol das causas do príncipe.
Capítulo 10 – Descobre-se a participação de Liébediev na confecção do documento lido. No fim da reunião aparece, inopinadamente numa carruagem à saída da casa, a figura temida e desprezada de Nastássia Filíppovna, já neste contexto odiada por muitos, dada a sua liberalidade de vida com Rogójin. A generala se despede do príncipe furiosa.
Capítulo 11 – Liébediev conta novidades para o príncipe a respeito de Agláia. Kólia aparece cheio de novidades. A fala tão atual de Liébediev é a seguinte: Palavras e ações, mentiras e verdades estão em mim de tal forma misturadas que no fundo sou sincero (Pg. 320 – 3º parágrafo).
Capítulo 12 – A generala volta à casa do príncipe disposta a fazer as pazes. Juntos discutem a provável paixão do príncipe por sua filha Agláia. Nas cartas trocadas entre ambos, fica clara a queda de Agláia pelo príncipe, ainda que este pareça não entender.

Terceira Parte (subdividida em 10 capítulos)
Capítulo 1 – Considerações a respeito do povo russo. A natureza perdoadora e conciliadora do príncipe é discutida.
Capítulo 2 – Evguénii Pávlovitch é elogiado pelo príncipe apesar da suspeita generalizada de seus negócios com a despeitada Nastássia Filíppovna. Numa festa aparece de supetão Nastássia e acaba gerando confusão e violência entre os participantes.
Capítulo 3 – O príncipe Míchkin corre o risco de ser desafiado para um duelo, por ter defendido Nastássia de uma possível violência masculina causada por um capitão. Agláia parece mesmo apaixonada pelo príncipe e por isso, estranho mundo das mulheres, o trata com desdém.
Capítulo 4 – Ippolít, o eterno tuberculoso, se encontra na varanda com o príncipe. Zombam de Liébediev por causa de sua interpretação do Apocalipse. Liébediev despreza a conceituação científica e materialista.
Capítulo 5 – Ippolít faz todo mundo se cansar por causa de um texto que ele insiste em ler. Trata-se de uma carta sua à moda de despedida da vida.
Capítulo 6 – Prossegue a leitura da carta.
Capítulo 7 – Ippolít tenta se matar usando uma velha pistola. A arma não tem munição e, por isso, ele vai ficar muito tempo se defendendo ao passo que os demais acreditarão ser ele um embusteiro. Agláia marca um encontro com o príncipe num certo jardim, próximo à sua casa.
Capítulo 8 – Agláia encontra o príncipe dormindo no jardim onde o encontro fora marcado. Míchkin conta para a moça os acontecimentos relativos a Ippolít. Agláia, na conversa que se segue, mostra toda sua infantilidade e irritação. Ela ameaça o príncipe com idéias sobre fuga e casamento e comenta as cartas recebidas por ela de Nastássia. Ambos são surpreendidos pela mãe da moça, Lizavéta Prokófievna.
Capítulo 9 – Kólia dialoga com o príncipe sobre os acontecimentos da noite anterior. Há a suspeita de que a malfadada tentativa de suicídio por parte de Ippolít não tenha passado de um embuste. Aconteceu um roubo na casa de Liébediev e as suspeitas recaem sobre o pai de Kólia, o general.
Capítulo 10 – Míchkin lê algumas cartas enviadas por Nastássia Filíppovna para Agláia. Percebe nelas um laivo de loucura, traços dos quais ele já havia suspeitado. Acontece, no mesmo jardim onde ele havia no dia anterior se encontrado com Agláia, um encontro inesperado com Nastássia e Rogójin.

Quarta Parte (subdividida em 11 capítulos)
Capítulo 1 – Dostoiévski inicia esse capítulo citando a personagem Varvára Ardaliónovna Ptítsin, fazendo uma análise dos "comuns". Segundo ele os livros acabam criando personagens que, na verdade, estão entre nós, mas não percebemos. Afirma: A maior parte dos autores tenta, em seus contos e novelas, selecionar e apresentar de modo artístico e vivo tipos raramente encontrados na inteireza de suas vidas imediatas, muito embora sejam, sem embargo, mais reais do que a vida real mesma (Pág. 468, 2º parágrafo). Em seguida, ele cita um personagem criado por Gógol, um dos maiores escritores russos, chamado Podkolióssin. Nas considerações de Dostoiévski, muitas vezes um escritor cria um personagem que, no entanto, a gente consegue encontrar em cada esquina, em qualquer feira ou praça de qualquer cidade do mundo. É exatamente o que se dá com o personagem de "Crime e Castigo" chamado Raskólnikov, com suas manias de grandeza ou pungentes manifestações de culpa.
            O projeto de Gavríl Ardaliónovith de casar-se com Agláia, parece não estar dando certo aqui. Sua irmã Varvára o coloca a par das últimas notícias sobre o provável casamento da moça com o príncipe Míchkin.
Capítulo 2 – Ippolít, que ficara morando na casa do príncipe Míchkin, vai para a casa de Ptítsin, cunhado de Gavríl. Não há entre ele e o príncipe nenhuma discussão, pois se despedem como bons amigos. O general, pai de Varvára, Gavríl e Kólia, parece acometido de uma grande enfermidade ou loucura. Paira sobre ele a suspeita de haver roubado uma carteira na casa de Liébediev e todos estão consternados com isso. O general amaldiçoa a todos em sua casa e sai para a rua angustiado.
Capítulo 3 – Liébediev conversa com o príncipe sobre a carteira roubada. Discutem a personalidade do general suspeito do roubo.
Capítulo 4 – O príncipe e o general Ardalión Aleksándrovitch, pai de Kólia, se reúnem em casa do primeiro para conversarem. O general se ressente das histórias de Liébediev e afirma não querer mais amizade com o mesmo. Como sempre o príncipe busca a conciliação. O general, entusiasmado, engendra uma história absurda sobre sua infância ao lado de Napoleão Bonaparte. Sabe-se, por intermédio do próprio Liébediev, que o general é um mentiroso contumaz. No entanto, ele e o general parecem se dar muito bem e ambos possuem idêntica característica, afinal, a fala de Liébediev: Palavras e ações, mentiras e verdades estão em mim de tal forma misturadas que no fundo sou sincero (Pg. 320 – 3º parágrafo), bem poderia ser também do general. Após uma série de episódios angustiantes, o general tem um ataque e cai nos braços do filho
Capítulo 5 – Entende-se na família de Agláia que a moça está apaixonada pelo príncipe. Ippolít e o príncipe conversam animadamente sobre coisas triviais. Ippolít continua, mesmo após o episódio do não disparo da arma de fogo, a se apresentar como um fraco.
Capítulo 6 – A família de Agláia vai dar uma festa para apresentar o príncipe como noivo da moça. Todos estão com medo dos ataques do príncipe. Liébediev comenta com o príncipe a respeito da carta de Agláia para Nastássia Filíppovna. A festa se desenvolve normalmente entre pessoas muito ricas e "bem nascidas". O príncipe, com medo de cometer algum erro, observa tudo de longe.
Capítulo 7 – Cheio de entusiasmo o príncipe conversa com algumas pessoas fazendo a defesa do ateísmo em detrimento do cristianismo. Ele afirma que a questão do ateísmo é ser uma resposta ao catolicismo. Parece que suas palavras ofenderam a sensibilidade de algumas pessoas, mas, apesar disso, todos o estimam muito.  Durante a festa Míchkin termina tendo mesmo um ataque.
Capítulo 8 – Míchkin rememora tristemente os acontecimentos da noite anterior. Agláia Ivánovna envia-lhe um bilhete pedindo-lhe que não saia de casa. Ambos vão encontrar-se com Nastássia Filíppovna na casa de Rogójin. As duas moças discutem e terminam brigando feio. Míchkin, que sempre sustentou a versão da loucura de Nastássia, se complica no fim da entrevista. Dá-se, por força das conseqüências desse episódio, o rompimento do acordo de casamento que havia entre o príncipe e Agláia.
Capítulo 9 – A entrevista entre as duas moças, bem como as conseqüências da mesma, acabam se transformando num enorme escândalo. O príncipe fica mal com a família de Agláia. Míchkin parece louco afirmando amar incondicionalmente as duas moças. Não consegue definir seu amor por Agláia, nem tão pouco os sentimentos que tem por Nastássia.
Capítulo 10 – O príncipe e Nastássia Filíppovna marcam casamento mas não sobem ao  altar. O povo, durante a cerimônia, grita palavras maldosas à noiva por considerarem-na uma prostituta. Rogójin, por enlouquecida solicitação da própria moça, arrebata-a no último instante levando-a embora para outra cidade.
Capítulo 11 – Míchkin vai até Petersburgo buscar sua noiva na casa de Rogójin. Depois de insistentes dias, Rogójin abre-lhe a porta de sua casa conduzindo-o até seu quarto onde, coberta por um lençol, jaz inerte o corpo sem vida de Nastássia Filíppovna. A história termina com Rogójin sendo enviado como prisioneiro para a Sibéria, por ter assassinado Nastássia, e o príncipe Míchkin, agora enlouquecido, sendo enviado para um sanatório. Lá, inconsciente, ele recebe a visita da família Epantchín.

Curiosidades do texto

Pg. 232, 233: Dostoiévski faz uma descrição do ataque epilético. Usa para isso, com certeza, sua própria experiência como epilético.

Pg. 380 – Fala de Liébediev: A conceituação científica e materialista dos últimos séculos é amaldiçoada.

Pg. 401 – (4º parágrafo) Manuscrito de Ippolít: Distraía-me com eles porque já tinha visto perfeitamente que me era vedado até mesmo aprender a gramática grega, como me deu na veneta certa vez. "morrerei sem sequer ter chegado à sintaxe"...

Pg. 402 – (2º parágrafo) – De certo modo, e como diz a introdução do livro, essa é uma ideia de Dostoiévski nas falas do tuberculoso Ippolít: "Acrescentarei, todavia, que sempre no fundo de cada novo pensamento humano, de cada pensamento de gênio ou mesmo de cada pensamento que emerge do cérebro como altíssima centelha, alguma coisa há que não pode ser comunicada aos outros, mesmo que fossem precisos volumes e mais volumes a respeito e que se levasse mais de trinta e cinco anos a querer explicar; alguma coisa que não sai do cérebro, que não pode emergir, que aí fica para sempre intata e incomunicável. Morre-se com ela, sem poder participá-la a quem quer que seja."

Erros de ortografia ou digitação

Pg. 157 (5º parágrafo)
com = como

Pg. 160 (9º parágrafo – 3ª linha)
enterrrou-se = enterrou-se

Pg. 164 (2º parágrafo – 1ª linha)
devera = deveria

Pg. 186 (2º parágrafo)
pelo fatos  = pelos fatos

Pg. 233 (3º parágrafo-21ª linha)
fela felicidade = pela felicidade

Pg. 237 (4º parágrafo – 15ª linha)
desenrosamente = desonrosamente

Pg. 259 (fim do parágrafo)
um tal malícia = uma tal malícia

Pg. 275 (3º parágrafo – 5ª linha)
varenda = varanda

Pg. 290 (3º parágrafo)
maulcos = malucos

Pg. 296 (1º parágrafo)
mas = mais

terça-feira, 6 de setembro de 2011

"O Perfume", obra de Patrick Süskind

                                                            suindaraalexandre...

Categoria: Romance
Idioma original: Alemão
Tradução: Flávio R. Kothe
Editora: Círculo do Livro S. A.
Total de páginas: 208

Leitura realizada entre os dias 20 e 30 de Agosto de 2011.

            O livro "O Perfume" de Patrick Süskind traz uma história exótica ocorrida na França do século XVIII. Seu personagem principal, um perfumista conhecido como Jean-Baptiste Grenouille, é um homem feio e desconhecido da população que, no decorrer da história, mostra sua grande capacidade olfativa. Grenouille nasceu em meio a restos de peixe vendidos numa feira. Sua mãe, que tentou por todos os meios eliminá-lo, era uma das trabalhadoras da feira que lidava na árdua tarefa de cortar, limpar e comercializar peixes. Logo após dar à luz, foi sentenciada à morte por ter tentado matar a criança. Grenouille, sendo recolhido pela igreja, ficou um bom tempo vivendo com a ama Jeanne Bussie, a expensas da comunidade religiosa representada pelo padre Terrier, um monge cinqüentão, careca, cheirando levemente a vinagre (pg. 10) que havia no convento de Saint-Merri. No entanto, o que chamou a atenção daqueles que tentaram cuidar dele, foi a estranha característica inata, por assim dizer, da criança não desprender de si nenhum cheiro. Por mais que seus cuidadores teimassem em buscar nele um indício de normalidade, viam-se assustados com essa particularidade fora de propósito. Expulso do convento, Grenouille foi morar na pensão da Sra. Gaillard, uma pobre e sonhadora criatura que cuidava de outras crianças e só pedia à providência que lhe desse uma boa morte.
            Entretanto, se bem que ele próprio não emitisse de si nenhum aroma, desde cedo ficou evidente que Grenouille tinha uma grande facilidade para misturar essencias e, por meio de ervas ou das substâncias mais grotescas, conseguir extrair cheiros que coadunassem com sua expectativa ou desejo. Evidentemente, durante muito tempo, tal habilidade ficou restrita a seu mundo pessoal, sendo que só mais tarde ele decidiu mostrar-se para conseguir realizar seus intentos. Grenouille procurou, na cidade onde morava, o melhor perfumista que, decadente e sem criatividade, após alguns testes, percebeu no garoto estranha habilidade para o mundo dos perfumes. Giuseppe Baldini era o nome desse perfumista. Baldini superado em sua fraqueza, ou seja, a falta de criatividade, apodera-se do garoto que não tinha nenhuma pretensão pessoal no mundo dos perfumes, mas apenas queria descobrir a essência perfeita, o cheiro que o levasse a dominar os homens.
            Grenouille tem uma trajetória incrível, circulando por várias partes da França e tentando, de um ou outro modo, encontrar esse aroma único, perfeito e legítimo que o pudesse galgar a alturas nunca antes vivenciadas por nenhum outro perfumista. O que transparece durante a história é o seu completo desprezo pela humanidade e sua gana pelos cheiros, pelas essências, pelos incensos que o envolvessem em sua "divina" trajetória. Nessa busca contínua, ele parece querer compensar, por meio de artifícios bem concretos, a falta de um perfume inato que o qualifique como gente, como participante natural da qualidade de ser humano.
            No dia 1º de setembro de 1753 (pg. 34) Grenouille cometeu seu primeiro assassinato. É certo que as pessoas que o conheciam, ou com quem ele convivia durante certo tempo, acabavam morrendo de forma inesperada. No entanto, assassinato mesmo, por suas próprias mãos, o primeiro foi o da garota "cheirosa" da Rue des Marais, no dia da coroação do rei. Grenouille, antes de assassiná-la para tomar posse definitivamente de seu odor cheirou o suor de suas axilas, a gordura dos seus cabelos, o cheiro de peixe do seu sexo, tudo com o maior prazer. O suor dela odorava tão fresco quanto a brisa do mar, o sebo dos seus cabelos, tão doce quanto o óleo das amêndoas, o seu sexo, como um buquê de lírios-d'água, a pele, como flores de pessegueiro... (pg. 37). Foi o primeiro duma série de crimes cometidos por causa do grau de perfeição perfumística solicitado pelo nariz do criminoso. Grenouille buscava nas garotas o hálito perfeito, a essência pura, capaz de subjugar os homens e deixá-los em suas mãos.
            A história atinge seu ápice quando Grenouille, apanhado e condenado à morte, consegue subjugar seus algozes por meio de um perfume criado por ele para dominar os homens. No entanto, quando por fim libertado da prisão e de qualquer outro infortúnio ligado ao caso, o criminoso se afasta das pessoas comuns e vai se juntar a um grupo de prostitutas e bandoleiros. Mesmo tendo poderes para conseguir o que quisesse, Grenouille, eternamente angustiado por sua condição de diferente, acaba se suicidando deixando-se, devido ao perfume que havia criado e borrifado sobre si mesmo, destroçar e devorar por uma pequena multidão reunida à noite em volta de uma fogueira em Paris.
      

domingo, 7 de agosto de 2011

Preceitos

            1. Comumente ouvimos conselhos sobre como devemos tratar nossa criança interior. Quase sempre evocam-se as palavras de Jesus tiradas do evangelho: ...das tais é o reino dos céus! Mas será que Jesus tinha alguma coisa a ver com essa recente supervalorização do espírito infantil como vemos hoje em dia? Será que suas palavras ditas num determinado contexto podem ser usadas como sustentáculo para idéias nocivas e completamente descontextualizadas? Ninguém pode negar que há e cada vez de forma mais despudorada uma plangente inclinação para a irresponsabilidade e falta de vergonha daqueles que se dizem simples como crianças. A frase dita por Jesus, obviamente fazia referência à inocência e falta de rancor como comportamento habitual das crianças. Comportamento este que deveria ser idêntico nas atitudes dos adultos. Entretanto, é bom lembrarmos que o mesmo Jesus agiu com energia quando confrontado com a realidade vergonhosa dos vendilhões do templo e dos fariseus que, na sua opinião, eram sepulcros caiados cujo interior não correspondia com a aparência externa.
            2. Nosso século será, mais do que qualquer outro, o século da completa sem vergonhice. O que dizer daqueles que se apropriam de versículos isolados da Bíblia para a defesa de seus desejos libertinos? Ah, dizem alguns, as prostitutas tem o seu lugar guardado lá no céu! Malandramente fazem uso de novo das palavras de Jesus quando afirma que as prostitutas entrarão no céu adiante dos religiosos. Fazendo uso de suas atribuições de completos facínoras descartam todo o contexto do versículo para fazerem tais absurdas e pecaminosas afirmações. As palavras do Cristo referem-se àquelas mulheres arrependidas que, a exemplo de Maria Madalena, deixaram tudo, inclusive a vida de pecados, para seguí-lo.
            3. O racismo deve ser sempre considerado como um sentimento nojento e nocivo. Não estou falando do racismo fundamentado em brincadeiras inocentes ou tiradas espontâneas. Ainda que tais práticas devam, grosso modo, ser constantemente evitadas por  nós, é fato que há frases ou palavras que, quando pronunciadas numa situação idêntica, também deveriam ser consideradas racistas ou, quando muito, prejudiciais e portanto proibidas. Hoje em dia é muito comum ouvirmos sobre a lei que considera os termos “preto” ou “de cor” como termos de forte conteúdo racista. Mas o que dizer daqueles que se referem a outros como “burros”, “idiotas”, “branquelos” ou coisa semelhante? Porque não são os tais também subjugados à mesma lei anti-racista? Parece-me, e estou certo que há aí, uma boa dose de hipocrisia. Eu, particularmente, não gostaria que me considerassem como um burro orelhudo ou um idiota desguarnecido de cérebro. Ninguém pode negar que nós brasileiros carregamos no sangue um resquício de cultura européia que cheira à chocarrice. Gostamos da galhofa e, por isso nos sobram tantos termos pouco recomendáveis para o uso. O racismo a que me refiro é aquele que despreza competências, nega asilo, humilha pessoas e massacra indivíduos. Esse sim é repugnante e pecaminoso. Aos olhos do bom senso todos nós somos iguais e corre em nossas veias um liquido vermelho que, quando exposto à luz, fede e se transforma em esterco. Somos iguais e igualmente marchamos para idêntico destino: a cova.
            4. A aceitação do homossexualismo é claro, veio pra ficar. Evidentemente muitas coisas vieram pra ficar, mas nem todas têm a mesma força que esta. Entretanto ainda que muitos considerem ser preciso uma análise acurada de todo conhecimento disponível pra justificar ou condenar tal prática, a simples observação dos fatos já pode nos fornecer muitas respostas. Antes de qualquer coisa, esqueçam a Bíblia. Afinal, não há nada lá que justifique a prática homossexual. De nada adianta ficar tirando conclusões, torcendo histórias ou tentando transformar a palavra “amor” em sinônimo de libertinagem. Os textos referentes às práticas que fogem ao âmbito da naturalidade estão por toda parte, basta ter o mínimo de honestidade para aceitá-los. No mais fiquemos apenas com a observação e a honestidade daquilo que a ciência afirma. Não é interessante o quanto a ciência pode servir para o mal e para o bem? As próprias pesquisas já não confirmaram que não existe possibilidade genética que assegure a existência de um terceiro sexo? Se a carreira cromossômica masculina e feminina só aceita possibilidades genéticas de “X” e “Y”, então porque a discussão permanece? Encerre-se a questão e que os homossexuais fiquem por sua conta e risco, assumindo o peso da escolha que, individualmente, fizeram.    
            5. A igreja é, no mundo, o baluarte da pregação do evangelho. Foi aqui deixada pelo Cristo para que suas palavras pudessem ser disseminadas. No entanto é notório também que a igreja é uma instituição comandada por seres humanos falhos e, via de regra, cheios de deficiências. A igreja ocupa hoje no cenário mundial grande peso político e pouca representação social; infelizmente os homens têm se deixado levar muito pela quantidade de dinheiro que podem amealhar dos incautos, mas não olham pelos necessitados, nem se preocupam com os carentes. É flagrante a necessidade de reformulação de conceitos, entretanto sabemos que pouco se fará, visto ser a vontade do homem neste mundo colocada em primeiro plano em detrimento da vontade de Deus. Conceitos como: prosperidade na mesa e posse de bens materiais suplantaram o que no passado se consideraria como ter o suficiente para a sobrevivência. Em geral os homens querem mostrar muito para poderem afirmar que são melhores que outros ou super abençoados pelo favor divino. Quem quiser julgar se tal ideia é correta ou não, deve apenas ler no Novo Testamento a história de Jesus e se convencerá, se for honesto, de que o rei dos reis aceitou a humanidade em detrimento da divindade. Só a consideração dessa verdade será suficiente para que todo ouro e prata do mundo sejam desprezados.
6. A riqueza é um bem conferido a poucos. É fato que, conquanto poucos tenham nascido com ela, alguns há que trabalham com o engodo e a desonestidade com o fim de alcançá-la. No entanto há também os que foram com ela agraciados por esforço contínuo ou dom de Deus. Nunca devemos julgar pessoas sem conhecer-lhes os rastros. O próprio Cristo disse que era mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no céu, no entanto o mesmo Cristo deixou bem claro logo em seguida: o que é impossível aos homens é possível a Deus. Nem todos os ricos são sovinas, nem todos os ricos conseguiram seus bens por intermédio da mentira ou do massacre dos pobres; muitos há que ajudam os necessitados em seus infortúnios e, por certo, serão abençoados por Deus no grande dia. O bom seria que nunca julgássemos nenhum indivíduo. O bom seria que guardássemos nossas bocas da maledicência e da soltura da língua, mas como somos fracos nisso!
7. O orgulho está muito unido a altivez de espírito, como quando aquele ser das luzes, lá no íntimo de seu coração afirmava: Subirei acima das estrelas do céu e me assentarei no trono de Deus! Assim é todo aquele que se orgulha por ser melhor que os outros ou por ter mais que os outros. Quem procede em sua vida como se tudo girasse ao seu redor, descobrirá, para seu próprio infortúnio, que ninguém dele sente falta e, ainda que tardiamente, perceberá que o planeta segue seu curso normal sem sua presença. Jesus numa parábola falou sobre o homem que guardou muitos bens e depois, deitado em sua cama, dizia: folga alma, pois tens muitos bens para muito tempo. O resultado desse procedimento orgulhoso foram as palavras vindas do alto em tom colérico: “louco, o que tens preparado para quem será?” Ainda que a sorte nos sobrevenha com muitos bens, e a alegria seja nosso cântico diário, nunca devemos nos esquecer que tudo que temos vem de Deus e só a ele deve ser dada toda gratidão e todo perfeito louvor. Diante de Deus somos pequenos, pífios e sem nenhuma valia. Mas quando elevados à categoria de filhos da divindade, aí é que assumimos nosso papel de coadjuvantes na história. Entretanto, que ninguém se engane julgando que o orgulho acomete apenas aos ricos e abastados deste mundo; há muitos pobres que, mesmo nada tendo, julgam-se muito superiores aos demais homens. Comem o pão da miséria, mas não se inclinam a pedir ajuda; sofrem as penas do abandono, mas não abrem mão do nariz empinado. O orgulho pode se apresentar de muitas formas, num simples piscar de olhos, num sorriso à meia boca, numa palavra espirituosa e até num gesto impensado, mas sempre será uma ofensa a Deus. Entretanto, não podemos confundi-lo com aquele sentimento de felicidade que nos sobrevém quando realizamos algo digno de elogio. Nossas conquistas fazem-nos orgulhosos de nossos feitos e, desde que tal orgulho não nos leve a desprezar as pessoas, não há mal nenhum nele.  
8. A palavra “paixão” vem do latim passione. Significa literalmente aquele sentimento tresloucado que muitos de nós já experimentamos; uma febre descontrolada que nos arrasta para fora da razão e do bom senso. Talvez pudéssemos defini-la como “desejo de morte”. Quando nos apaixonamos nos desnudamos diante do outro assumindo uma roupagem que não é nossa. Assim se dá com aqueles que se apaixonam pela bebida ou pelo uso de drogas. Tais pessoas desprezam a própria família e amigos em detrimento do objeto de sua paixão. Abandonam o convívio social e pessoal porque já não conseguem perceber o quão importante são as pessoas e hábitos que está abandonando. São inúmeras as histórias também de homens, ou mulheres, que abandonaram seus filhos e cônjuge por causa da paixão que sentiram por outra pessoa. Algum tempo depois, tais indivíduos se arrependem da loucura que cometeram, mas se dão conta, para tristeza deles, de que já não há como voltar atrás. A paixão é um desejo de morte no sentido em que, abraçados por ela, nos despojamos de tudo o que é nosso para vestir aquilo que é do outro, sejam hábitos, crenças, vícios ou preferências.
9. O amor é o mais nobre sentimento cultivado pela raça humana. Diferentemente da paixão, o amor se desnuda, não para assumir a roupagem do outro, mas, sim, para ajudar a vestir o outro. Quando lemos a história do bom samaritano, percebemos ali um relato cheio de amor, numa história plena de verdades eternas. A primeira verdade é que sempre existem mais pessoas tratando o próximo com indiferença do que com amor. Assim aconteceu com o sacerdote e o levita que passavam junto ao caminho. A segunda verdade é que quem de fato ama pouco se importa com as dificuldades para a manifestação do amor, a exemplo do que fez o bom samaritano. A terceira verdade, se bem que talvez encontrássemos outras, é que quem ama não se preocupa apenas com o presente, mas também com o futuro do objeto de seu amor. Aqui também nos lembramos do bom samaritano deixando pagas, na estalagem, as despesas com o homem ferido e, fazendo menção de que tudo o mais seria pago no futuro. O amor, como disse o apóstolo, tudo suporta tudo sofre e tudo crê. Nenhum exemplo de amor, entretanto, poderá superar aquele manifestado pelo filho de Deus que a si mesmo se entregou por nós.  O amor nada faz por obrigação ou medo, mas sim por prazer. Aquele que ama estende a mão, nem que para isso tenha que perdê-la. Aquele que ama sustenta e apóia, aconselha quando acha necessário e abraça quando sente que é preciso.
10. A palavra “saudade” é muito forte na língua portuguesa. Em outros idiomas, a palavra usada para expressão do mesmo sentimento, nem sempre é tão enfática quanto na nossa língua. E podemos usá-la para várias ocasiões. Quando estamos longe de alguém que amamos, quando nos lembramos de algo há muito tempo vivenciado e mesmo ao nos recordarmos de alguma situação ruim que, no entanto, vem mesclada de sentimentos bons. A saudade acomete os que estão longe de sua pátria, como os judeus que choravam os acordes de Sião. Ela aperta o coração daqueles que, a exemplo de Eliseu clamam: “meu pai, meu pai”.  
11. Harmonia é uma palavra muito bonita que significa coesão, unidade, sintonia. Na música ela denota a perfeita ligação entre acordes diferentes que perfazem uma melodia. No trabalho, a harmonia requer coerência de atitudes e propósitos para que seja possível. Nos estudos é preciso que haja harmonia entre as matérias, para que o conhecimento final seja completo e útil. Até a Bíblia, no conjunto de seus sessenta e seis livros, apresenta a noção de harmonia. No entanto, nenhuma harmonia é possível quando há na música um tom que não se coaduna com os demais. Sem coerência no trabalho, ela é impossível. Se ela não existir nos estudos, o resultado final será nulo. E a Bíblia seria completamente inócua sem a harmonia. A harmonia requer conjunto e unidade, grupo e coesão, multiplicidade e sintonia. Se olharmos bem, tudo pede harmonia. Como seria possível a constituição do universo, tal qual o conhecemos, se os planetas não estivessem alinhados harmoniosamente? Existiríamos como igreja sem ela? Triunfaria o cristianismo caso ela não existisse? Seria impossível! Vivamos, pois, em harmonia. Deus, na sua eterna bondade, apenas nos pede que sejamos sábios cultivando a harmonia com ele. Se assim o fizermos nossos passos serão direitos, nossos olhos enxergarão longe, nossas mãos nunca sentirão falta do sustento, nossos lábios falarão a justiça e nosso coração amará a verdade.
12. A verdade é a coisa mais procurada no mundo inteiro. Há muitos hoje que negam a existência dela. Outros há que acreditam numa verdade relativa que acaba por servir a todos os homens. Mas tal verdade apregoada, não passa de um embuste, cujo propósito é a sonegação daquilo que realmente significa verdade. O que é a verdade? Perguntou Pilatos e, logo em seguida, entregou a verdade para ser destruída. A filosofia, grosso modo, não apresenta o conceito de verdade como satisfatório, mas alguns, mesmo assim, dirão que a verdade é aquilo que é. Como então definir exatamente a palavra verdade? O conceito bíblico de verdade apresenta-a como expressão máxima da realidade observada ou vivenciada. Neste sentido não há como se utilizar de frases ambíguas que deixem margem a dúvidas. A expressão “Meia verdade” torna-se vazia e sem sentido quando se pensa na definição da palavra verdade. Tanto que o Novo Testamento nos encoraja afirmando: “vossas palavras sejam sim, sim e não, não, pois o que passa disso é de procedência maligna. Não há também como caracterizar as verdades de pequenas ou grandes, visto que verdade sempre será verdade e mentira sempre será mentira. Entretanto temos que fazer aqui uma distinção entre modos conceituais de verdade. Quando falamos da verdade como o conceito mais procurado do mundo estamos pensando de algo que foge à mera conveniência do sermos verdadeiros no dia a dia ou não. Estamos tentando descobrir o fim último da existência e não a veracidade de assuntos singulares. Nosso viver diário nos coloca em confronto com situações nas quais só há uma possibilidade de verdade e uma possibilidade de mentira. Entretanto estamos ligados, e parece que de modo universal, há um desejo inerente de conhecimento do futuro. Há aqueles que pensam mais sobre o assunto e aqueles que pensam menos. O essencial para o encontro com a verdade é a honestidade e o desejo real de descobri-la. A bíblia afirma que a verdade, como fim último de nossa existência terrena, só pode ser encontrada em Deus e em nada mais. Todo aquele que é da verdade vem para a verdade, disse Jesus, porque nele, isto é, em Jesus, não há mentira alguma.
13. Deus é tudo o que há de bom e verdadeiro em si mesmo. Isso não significa que ele seja “um ato de bondade”, pois nem sempre um ato de bondade guarda boas intenções, mas sim que ele não pode ser o oposto de bom, nem tampouco guarda consigo desejos maus. Não podemos pensar em Deus como um pai “amoroso” que dá permissão a tudo o que se queira fazer, ou que apóia o filho em todas as suas decisões, quer sejam boas ou más, afinal isso seria considerá-lo como um tolo. Tampouco devemos imaginá-lo como um tirano impiedoso a quem as súplicas de um filho nada represente. Deus é o que é, como disse a Moisés: “Sou o que sou”, portanto qualquer coisa que digamos a respeito dele estará sempre carregada de um puro conteúdo humano. Na verdade o que sabemos, nesse caso, sempre representará um nada diante do que devíamos ou gostaríamos de saber. Entretanto como nosso nível de experiência é o puramente humano e, alicerçados nas experiências humanas, podemos dizer que Ele é bom, misericordioso, justo, verdadeiro, santo e que nos ama. Sem Deus nada existiria, e isso levando em conta que até o “nada” já é uma pressuposição de existência.                            

sábado, 6 de agosto de 2011

A história do capelão pelos lábios de Aoturo

Sobre o inconveniente de suprimir as idéias morais e divinas do espírito humano
                
grupoescolar.com


         _ Ele parece estar morto!
            _ Olhe bem nos olhos dele e tente sentir a pulsação.
            O homem forte de braços angulosos remexeu as pálpebras do gigante negro, mas bem no fundo percebeu uma centelha de vida.
            _ Está vivo.
            _ Soldado - berrou o oficial dirigindo-se a alguém parado a pouca distância dali - traga imediatamente uma bacia d'água e um copo de aguardente. O soldado distanciou-se na penumbra reaparecendo logo depois com as coisas solicitadas. Soltaram os pulsos do homem, desamarraram seus pés e o deitaram sobre umas folhas de bananeira que alguém improvisara a modo de maca. Derramaram a aguardente em seus lábios e, em seguida, borrifaram água sobre seu rosto, pulsos e principalmente olhos. O negro despertou assustado, mas eram visíveis as dores e a febre que principiava a percorrer-lhe o corpo. Depositado sobre a maca improvisada levaram-no para o acampamento.
                                                                                         

                          DIÁLOGO ENTRE “C” E “D”

                                      
        C) _ A noite, parece, não nos dará o que o dia havia prometido.
        D) _ Como sabeis disso?
        C) _Basta olhar esse céu nublado e sentir o sereno que em gotas quase imperceptíveis teimam em vir pousar sobre nossas cabeças.
        D) _ É verdade. Mas também não tivemos muito calor hoje. Apenas um sol tímido e uma brisa suave soprando d’além mar.
        C) _ No entanto o que fazes?
        D) _ Penso.
        C) _ Mas, sobre o quê?
        D) _ Enquanto ao pé deste fogo relembro a história do capelão que forçosamente foi trasladado do Taiti.
        C) _ Ainda o relato daquele negro?
        D) _ Ainda.
        C) _ Não entendo esses homens. Seguramente dispensam um texto pelo relato de um negro escravo.
        D) _ Nisso me colocas na mesma categoria?
        C) _ Se teimas em acreditar num negro foragido!
        D) _ Mas e se tudo o que ele nos contou de fato for verídico?
        C) _Também você preferiria confiar na história de um estrangeiro que nunca vimos?
        D) _ Não vejo em que este caso seria diferente do outro. Afinal na extremidade oposta temos também essencialmente apenas um relato em forma de livro que nos foi entregue por um homem civilizado. Eu nunca o conheci e você?
        C) _ Inútil me provocar com seus rodeios de sabedoria espartana. O fato é que esse negro podia ser um louco vindo de qualquer lugar; quanto a Bougainville bem sabemos de onde era e o que pretendia.
        D) _ Exatamente aí está o problema meu amigo, na pretensão dos homens. Não estou dizendo que devamos acreditar integralmente nas palavras do taitiano, entretanto por que não submetermos a julgamento o relato que nos deixou?
        C) _ Que pensais de sua história?
        D) _ Do que posso julgar da leitura do seu relato, como nos foi transcrita pelo oficial marinheiro, devo somente dizer que me pareceu muito sóbrio e nenhum pouco leviano. Ou o oficial submeteu o texto à retórica refinada de si mesmo emprestando ao negro palavras que não eram dele, ou então, o homem fez-se apenas porta-voz tal e qual do que ouvira.                                           
        C) _ Mas como ele poderia entender um estrangeiro? Não houve como disseram um intérprete?
        D) _ Acredito que sim.
        C) _ Isso não lhe tira um pouco o mérito? É provável que o intérprete tenha floreado suas palavras.
        D) _ Pode ser.
        C) _ Acho preocupante quanto à veracidade dos fatos.
        D) _ Não tanto quanto ao relato de Bougainville. Afinal o que pesa mais sobre a verdade ou não de um relato, a casualidade dos que o transcrevem como mero diário de viagem, ou a honestidade de um negro deixado em terra estranha e coberto de sangue? No mais tanto cá quanto lá se fez necessária a presença de um tradutor.
        C) _ É um ponto a considerar. Qual era o nome do taitiano?
        D) _ Aoturo.                 
        C) _ Eu nunca estive além destas terras e do que ouço filtro o necessário. Tenho poucos amigos que jamais saíram daqui. Entretanto é grande minha predileção por casos insólitos, mas gosto de prová-los no funil das boas intenções.
        D) _ E o que são as boas intenções?
        C) _ Me refiro ao costume que alguns têm de subverter os fatos a propósito deste ou daquele navegante. Há alguns que contam horrores desses personagens retratando-os como temerários, assassinos, bandoleiros dos mares...
        D) _ Acalme-se. Não tenho tal intenção. Meu objetivo será tão somente expor os fatos, ou as palavras ditas pelo negro em seu instante derradeiro. No mais me parece que você acaba de descrever as características das más intenções...
        C) _ Me equivoquei? É possível, mas vamos aos fatos...
        D) _ Aoturo foi instado muitas vezes, durante o período em que esteve às mãos dos oficiais do navio, sobre quem era ele, o que fazia aqui e pra onde estava indo. Começou por fazer menção das atrocidades que presenciara, mas ante a solicitação dos homens ele falou também sobre os costumes de sua terra, as características dela e os momentos lá vividos. É fato que suas palavras estavam carregadas de sofrimento, no entanto...  Bem, ele era originário de um mundo distante onde os homens viviam amontoados em cabanas, cercados por extenso cordel de rituais esdrúxulos, superstições e preceitos inúteis. Seus deuses estavam representados nos enormes totens, mas também apareciam no formato de pequenos objetos coloridos, colares feitos de dentes de animais, pulseiras, argolas que atravessavam o lóbulo das orelhas e a carne das bochechas, a cartilagem do nariz e até mesmo a língua. O conceito de higiene era quase inexistente. Tanto que junto às cabanas, quase às portas, tanto crianças quanto adultos teimavam em depositar suas fezes, deixando escorrer a urina sobre as paredes, o escarro sobre o chão de terra barrenta. Imensas nuvens de moscas punham seus ovos naqueles charcos fedorentos e o cheiro de coisa podre pairava no ar.
        C) _ Um mundo perdido?
        D) _ Provavelmente mais achado do que poderíamos supor.
        C) _ Desculpe-me a intromissão.
        D) _ Claro! Ele nos contou que inúmeros nativos viviam doentes, acossados pelos vírus dos ares, submetidos às carrancas dos deuses, subjugados pela ira dos seres invisíveis. Tanto que os rituais se sucediam. Todas as noites os sobreviventes reuniam-se em volta das fogueiras e de posse de lâminas sagradas retalhavam seus corpos na oferenda muda do sangue que escorria como oferta de libação. As crianças bebiam o sangue de animais enquanto as mulheres corriam em volta delas proferindo palavras ininteligíveis num completo estado de transe auto-hipnótico, se é que se pode sugerir tal estado mental.
        C) _ Posso supor a volta à condição primeva do homem?
        D) _ Se acreditas nisso temos ai uma das palingenesias mais funestas. Por que não dizer a confirmação do elo jamais perdido? Mas você verá que nada disso era sem motivo. A desgraça tem sempre um ponto de partida que depois se confunde e se mistura às cores vibrantes de acontecimentos mais coloridos e, uma vez misturados, ganha o contorno que se quer lhe dar. É notável no mundo a manipulação dos fatos, o degredo das realizações importantes desprezadas em face às mais abjetas intenções. Aoturo nos contou que por essa época surgiu junto à praia a figura austera do capelão. Era um sujeito de compleição modesta, traços singulares naquela região remota, um homem simples que de imediato chamou a atenção devido à vestimenta esquisita, devido ao rosto obliquo encimado por loura cabeleira e imponência de recém-chegado.
        C) _ Aos olhos dos nativos um dragão fosforescente!
        D) _ Aí é que você se engana. Eles o receberam quase como a um deus descido dos céus ou saído da terra. Atribuímos à divina providência o pouco que há da centelha divina em cada ser humano. Neles essa centelha se manifestara num formato de lenda, história tradicional, rústica oralidade que se propagou boca-a-boca desde incontáveis anos.
        C) _ Dando conta do quê exatamente?
        D) _ A lenda discorria a respeito de um estrangeiro pelado de cores, tendo na cabeça um chumaço de folhas secas e por vestimenta a negrura da noite salpicada de estrelas. Forçosamente traria nas mãos um talo de bananeira que, uma vez aberto, seria usado como um bálsamo na cura dos males de dentro e de fora.
        C) _ Já ouvi diversos relatos semelhantes sobre outras tribos. Sem dúvida, se se pode crer nestas histórias, têm-se aí um problema aparentemente insolúvel.
        D) _ Porque aparentemente?
        C) _ A ciência meu amigo, a ciência explica qualquer coisa.
        D) _ Bem, me recuso agora a discutir tal afirmação. Quero me ater aos fatos como narrados pelo nativo.
        C) _ Claro! Em frente.
        D) _ O capelão trazia pendurado no pescoço os símbolos de sua fé: Crucifixos, cordões, um cajado onde se apoiava tendo no alto a efígie de um homem agonizante e, nas mãos, aquilo que os nativos identificaram como o talo de bananeira não passando de um grosso volume da Bíblia dos cristãos. De pronto estabeleceu-se um vínculo baseado na lenda dos nativos, lenda sabiamente aproveitada pelo capelão. Ele apresentou-se como o enviado, reorganizou a estrutura da aldeia, se intrometeu nas dificuldades dos nativos utilizando-se dos parcos recursos que possuía na cura de homens e mulheres acometidos por doenças, combateu valorosamente as epidemias e criou o mínimo possível de proteção por meio da conscientização sanitária. Com inúmeras dificuldades fez ver aos chefes da tribo a necessidade das mudanças que propunha e ainda teve tempo para criar escolas utilizando-se do dialeto deles. Sem ferir a vaidade de seus curandeiros angariou a confiança de todos.
         C) _ Eu sempre soube da atitude guerreira desses povos...
         D) _ Também esse o era. Tanto que por diversas vezes suas flechas, suas lanças, as setas embebidas nos venenos letais haviam afastado de suas fronteiras as hordas assassinas daqueles que em nossa pátria seriam heroicamente considerados bandeirantes, desbravadores, conquistadores...
        C) _ Percebo sua intenção de separar o trigo do joio. Quer me fazer crer que a intenção dos jesuítas diferia do propósito de seus amigos colonizadores?
        D) _ Conto o que ouvi!
        C) _ Sim, sim... Mas, apenas me esclareça se sua ingenuidade o leva a supor a completa separação entre a religião e a dominação. Não é evidente que o cristianismo tenha usado a força por esses séculos incontáveis para a escravidão do ser conquistado?
        D) _ Antes me responda, você leu o relato à viagem de Bougainville?
        C) _ Sim!
        D) _ Ingenuamente acreditas que durante séculos os cristãos tenham se ocupado apenas em aprisionar seus conversos? Será que os benefícios incontestáveis da caridade deste capelão não constituem por si só um libelo contra tais suposições arbitrárias? Creio que há de ser no mínimo desonesto aquele que medir o cristianismo de acordo com o campo de visão de um acéfalo. Seria mais justo se usasse o recurso do ciclope.
        C) _ Mas você não contesta a tirania dos governos chamados cristãos?!
        D) _ Nem tampouco a tirania dos verdadeiros cristãos. Afinal quantos professam hoje uma fé que não existe, um compromisso que não assumiram. A falência da instituição reside no discurso descompromissado de seus constituintes. No entanto tais problemas jamais deixarão de existir enquanto o homem for homem.
        C) _ Aí vem você com a ladainha do pecado original!
        D) _ Nunca! Sei que seria de todo desnecessário. Apenas desejo assegurar que o relato de Bougainville generaliza fazendo uso de uma desonestidade consciente. Entretanto, mesmo achando-o desonesto e generalizador, sei reconhecer as deficiências presentes nesse meu cristianismo. 
        C) _ Não esqueçamos também que você está fazendo uso do relato do capelão. Provavelmente um manípulo da religião.
        D) _ Pouco provável, entretanto...
        C) _ Mas me diga, há alguma similaridade na história desse homem, algo mais que nos lembre, por exemplo, da figura imponente do ancião?                
        D) _ Não muito; de passagem me recordo da conversa inicial entre o capelão e seus hospitaleiros silvícolas. É fato que o receberam com festa, cheios daquela admiração ingênua tão presente nos olhos das crianças. Com suas garrulices acercaram-se dele tocando-o, provando-o, beliscando a pele clara e a vestimenta escura. Após o identificarem como o suposto mensageiro da lenda, houve uma espécie de reunião, um círculo formado ao redor do fogo, e, enquanto se aqueciam o principal deles pôs-se a falar: _ “Nós não tínhamos deuses nem sacerdotes. Crescemos todos às margens dos grandes rios e vivíamos sob a liberdade das estrelas. Quando a chuva regava a terra elevávamos nossos pensamentos a uma única divindade, àquela que supúnhamos estar acima de nós. Quando o sol surgia iluminando as folhas, fazendo brilhar nos cachos os frutos era a essa mesma divindade que agradecíamos num movimento espontâneo de braços e pernas. Foi quando chegaram à ilha os primeiros caçadores munidos de suas enormes embarcações, carregados de espelhos d’água e hastes falantes. Eles subverteram nossas idéias com seus presentes e, em troca disso, levaram nossas pedras e as riquezas que nem sabíamos serem riquezas. Mas quando tentaram se apossar de nossa liberdade obrigando-nos a toda sorte de trabalhos então nos revoltamos. Muitos dos nossos foram massacrados, mas prevaleceu nosso espírito guerreiro. Agora que queremos ouvir-te, a quem nos apresentas?” Respondeu o capelão cheio da mais respeitosa reverência: _ “Àquele a quem vocês adoravam sem o saber. Ao Deus único criador de tudo que existe no céu, na terra e sob a terra.”
        C) _ Eis aí a fórmula degradatória dos povos!
        D)_ Sim, como queira, mas a despeito de seu ímpeto, permita-me prosseguir.
        C) _ Prossiga.
        D) _ Em geral o que ocorreu foi uma completa reformulação das leis e costumes daquele povo.
        C) _ Leis e costumes? Eles não disseram que viviam livres pelas florestas?
        D) _ Sim, mas a liberdade não suprime a necessidade da ordem e, como consegui-la senão pela manutenção de leis e costumes?
        C) _ À palavra lei entendo um conjunto de regras, preceitos de ordem moral talvez, mas e aos costumes? Qual o significado? Seria o mesmo de tradição?
        D) _ Não com a mesma profundidade de significados, mas por que não? Os costumes na sociedade são como um freio para as paixões aviltantes que podem desvirtuar o cenário estabelecido. Entretanto isso me parece também pouco atraente visto serem os costumes apenas reflexos do gosto geral e, então, mutável. Tradição tem um sentido de coisa duradoura. O que queria destacar era a suscetibilidade dos silvícolas na aceitação das propostas do capelão. Eles já eram detentores de leis próprias que ditavam as regras para o bem comum.
        C) _ Por exemplo...
        D) _ Leis a respeito da união dos sexos, educação das crianças, vivência na tribo, trabalho e etc.
        C) _ Leis no sentido lato da palavra?
        D) _ Que, no entanto não deixam de ser leis, ou contestas?
        C)_ Claro que não. Tudo que regula ou controla a vida de alguém forçosamente é uma lei. O cristianismo com a mais perversa representação delas devido ao recrudescimento das investidas.
        D) _ Bom, a despeito de suas considerações finalizo. A lei cristã propagada pelo capelão deu mostras de plena aceitação a ponto de pacificá-los.
        C) _ Aí está o ponto. Antes que continues deixe-me concluir sua história. Os nativos foram pacificados, os exploradores se apropriaram da ilha e os escravizaram, certo?
        D) _ Exato!
        C) _ E ainda tentas apresentar isso como triunfo ou ponto positivo do cristianismo?
        D) _ Nem como triunfo, nem como ponto positivo, apenas como algo que devia ocorrer. A mensagem cristã jamais teve a intenção do confronto armado, nunca se preocupou com a defesa física em detrimento da espiritual. Ainda que alguns a julguem como um conjunto de regras obsoletas ela se presta também à manutenção da vida alheia. Imagine o que significa isso? Um grupo de extrema hostilidade repentinamente abandonando as armas, valorizando mais a vida do outro que a sua própria? Mas, se falas em triunfo, bem, admitamos que ele existiu.    
        C) _ E quanto a Bougainville? Onde aparece nessa história?...
        D) _ Segundo Aoturo foi ele o destruidor da aldeia. Derrubou as cabanas, ateou fogo às plantações erigidas pelo capelão em benefício dos nativos, violou a integridade física e emocional de todo um povo por meio do estupro de suas moças, a escravidão dos jovens e a morte das crianças de colo. Depois levou Aoturo em suas viagens apresentando-o como uma espécie de prêmio. Nunca o deixavam abrir a boca durante essas viagens alegando estar ele desacostumado à cultura de outros povos. Quando se atirou sobre uma européia tentando transmitir-lhe suas desgraças pessoais foi enxotado feito um cachorro e disseram coisas sobre ele que não condiziam com a realidade.
        C) _ Estranho isso...
        D) _ O quê?
        C) _ Como será que ele pôde compreender o que falavam dele?
        D) _ É provável que a permanência no meio de tais homens o tenha aproximado bastante daquele idioma.
        C) _ Considero esse nativo polido.
        D) _ E eu, muito mais esse capelão e seus esforços missionários.
        C) _ Entrementes o abandonaram aqui nessas praias...
        D) _ Sim, foi posteriormente açoitado e abandonado durante uma daquelas viagens de exploração. O capelão, coitado, teve um fim mais drástico. Instigado a abandonar a fé, e não o fazendo, foi executado após ter as mãos e os pés cortados a golpes de facão.
        C) _ De qualquer modo o fim para ambos. O inexorável instante derradeiro em mãos de homens cruéis.