Sobre o inconveniente de suprimir as idéias morais e divinas do espírito humano
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_ Ele parece estar morto!
_ Olhe bem nos olhos dele e tente sentir a pulsação.
O homem forte de braços angulosos remexeu as pálpebras do gigante negro, mas bem no fundo percebeu uma centelha de vida.
_ Está vivo.
_ Soldado - berrou o oficial dirigindo-se a alguém parado a pouca distância dali - traga imediatamente uma bacia d'água e um copo de aguardente. O soldado distanciou-se na penumbra reaparecendo logo depois com as coisas solicitadas. Soltaram os pulsos do homem, desamarraram seus pés e o deitaram sobre umas folhas de bananeira que alguém improvisara a modo de maca. Derramaram a aguardente em seus lábios e, em seguida, borrifaram água sobre seu rosto, pulsos e principalmente olhos. O negro despertou assustado, mas eram visíveis as dores e a febre que principiava a percorrer-lhe o corpo. Depositado sobre a maca improvisada levaram-no para o acampamento.
DIÁLOGO ENTRE “C” E “D”
C) _ A noite, parece, não nos dará o que o dia havia prometido.
D) _ Como sabeis disso?
C) _Basta olhar esse céu nublado e sentir o sereno que em gotas quase imperceptíveis teimam em vir pousar sobre nossas cabeças.
D) _ É verdade. Mas também não tivemos muito calor hoje. Apenas um sol tímido e uma brisa suave soprando d’além mar.
C) _ No entanto o que fazes?
D) _ Penso.
C) _ Mas, sobre o quê?
D) _ Enquanto ao pé deste fogo relembro a história do capelão que forçosamente foi trasladado do Taiti.
C) _ Ainda o relato daquele negro?
D) _ Ainda.
C) _ Não entendo esses homens. Seguramente dispensam um texto pelo relato de um negro escravo.
D) _ Nisso me colocas na mesma categoria?
C) _ Se teimas em acreditar num negro foragido!
D) _ Mas e se tudo o que ele nos contou de fato for verídico?
C) _Também você preferiria confiar na história de um estrangeiro que nunca vimos?
D) _ Não vejo em que este caso seria diferente do outro. Afinal na extremidade oposta temos também essencialmente apenas um relato em forma de livro que nos foi entregue por um homem civilizado. Eu nunca o conheci e você?
C) _ Inútil me provocar com seus rodeios de sabedoria espartana. O fato é que esse negro podia ser um louco vindo de qualquer lugar; quanto a Bougainville bem sabemos de onde era e o que pretendia.
D) _ Exatamente aí está o problema meu amigo, na pretensão dos homens. Não estou dizendo que devamos acreditar integralmente nas palavras do taitiano, entretanto por que não submetermos a julgamento o relato que nos deixou?
C) _ Que pensais de sua história?
D) _ Do que posso julgar da leitura do seu relato, como nos foi transcrita pelo oficial marinheiro, devo somente dizer que me pareceu muito sóbrio e nenhum pouco leviano. Ou o oficial submeteu o texto à retórica refinada de si mesmo emprestando ao negro palavras que não eram dele, ou então, o homem fez-se apenas porta-voz tal e qual do que ouvira.
C) _ Mas como ele poderia entender um estrangeiro? Não houve como disseram um intérprete?
D) _ Acredito que sim.
C) _ Isso não lhe tira um pouco o mérito? É provável que o intérprete tenha floreado suas palavras.
D) _ Pode ser.
C) _ Acho preocupante quanto à veracidade dos fatos.
D) _ Não tanto quanto ao relato de Bougainville. Afinal o que pesa mais sobre a verdade ou não de um relato, a casualidade dos que o transcrevem como mero diário de viagem, ou a honestidade de um negro deixado em terra estranha e coberto de sangue? No mais tanto cá quanto lá se fez necessária a presença de um tradutor.
C) _ É um ponto a considerar. Qual era o nome do taitiano?
D) _ Aoturo.
C) _ Eu nunca estive além destas terras e do que ouço filtro o necessário. Tenho poucos amigos que jamais saíram daqui. Entretanto é grande minha predileção por casos insólitos, mas gosto de prová-los no funil das boas intenções.
D) _ E o que são as boas intenções?
C) _ Me refiro ao costume que alguns têm de subverter os fatos a propósito deste ou daquele navegante. Há alguns que contam horrores desses personagens retratando-os como temerários, assassinos, bandoleiros dos mares...
D) _ Acalme-se. Não tenho tal intenção. Meu objetivo será tão somente expor os fatos, ou as palavras ditas pelo negro em seu instante derradeiro. No mais me parece que você acaba de descrever as características das más intenções...
C) _ Me equivoquei? É possível, mas vamos aos fatos...
D) _ Aoturo foi instado muitas vezes, durante o período em que esteve às mãos dos oficiais do navio, sobre quem era ele, o que fazia aqui e pra onde estava indo. Começou por fazer menção das atrocidades que presenciara, mas ante a solicitação dos homens ele falou também sobre os costumes de sua terra, as características dela e os momentos lá vividos. É fato que suas palavras estavam carregadas de sofrimento, no entanto... Bem, ele era originário de um mundo distante onde os homens viviam amontoados em cabanas, cercados por extenso cordel de rituais esdrúxulos, superstições e preceitos inúteis. Seus deuses estavam representados nos enormes totens, mas também apareciam no formato de pequenos objetos coloridos, colares feitos de dentes de animais, pulseiras, argolas que atravessavam o lóbulo das orelhas e a carne das bochechas, a cartilagem do nariz e até mesmo a língua. O conceito de higiene era quase inexistente. Tanto que junto às cabanas, quase às portas, tanto crianças quanto adultos teimavam em depositar suas fezes, deixando escorrer a urina sobre as paredes, o escarro sobre o chão de terra barrenta. Imensas nuvens de moscas punham seus ovos naqueles charcos fedorentos e o cheiro de coisa podre pairava no ar.
C) _ Um mundo perdido?
D) _ Provavelmente mais achado do que poderíamos supor.
C) _ Desculpe-me a intromissão.
D) _ Claro! Ele nos contou que inúmeros nativos viviam doentes, acossados pelos vírus dos ares, submetidos às carrancas dos deuses, subjugados pela ira dos seres invisíveis. Tanto que os rituais se sucediam. Todas as noites os sobreviventes reuniam-se em volta das fogueiras e de posse de lâminas sagradas retalhavam seus corpos na oferenda muda do sangue que escorria como oferta de libação. As crianças bebiam o sangue de animais enquanto as mulheres corriam em volta delas proferindo palavras ininteligíveis num completo estado de transe auto-hipnótico, se é que se pode sugerir tal estado mental.
C) _ Posso supor a volta à condição primeva do homem?
D) _ Se acreditas nisso temos ai uma das palingenesias mais funestas. Por que não dizer a confirmação do elo jamais perdido? Mas você verá que nada disso era sem motivo. A desgraça tem sempre um ponto de partida que depois se confunde e se mistura às cores vibrantes de acontecimentos mais coloridos e, uma vez misturados, ganha o contorno que se quer lhe dar. É notável no mundo a manipulação dos fatos, o degredo das realizações importantes desprezadas em face às mais abjetas intenções. Aoturo nos contou que por essa época surgiu junto à praia a figura austera do capelão. Era um sujeito de compleição modesta, traços singulares naquela região remota, um homem simples que de imediato chamou a atenção devido à vestimenta esquisita, devido ao rosto obliquo encimado por loura cabeleira e imponência de recém-chegado.
C) _ Aos olhos dos nativos um dragão fosforescente!
D) _ Aí é que você se engana. Eles o receberam quase como a um deus descido dos céus ou saído da terra. Atribuímos à divina providência o pouco que há da centelha divina em cada ser humano. Neles essa centelha se manifestara num formato de lenda, história tradicional, rústica oralidade que se propagou boca-a-boca desde incontáveis anos.
C) _ Dando conta do quê exatamente?
D) _ A lenda discorria a respeito de um estrangeiro pelado de cores, tendo na cabeça um chumaço de folhas secas e por vestimenta a negrura da noite salpicada de estrelas. Forçosamente traria nas mãos um talo de bananeira que, uma vez aberto, seria usado como um bálsamo na cura dos males de dentro e de fora.
C) _ Já ouvi diversos relatos semelhantes sobre outras tribos. Sem dúvida, se se pode crer nestas histórias, têm-se aí um problema aparentemente insolúvel.
D) _ Porque aparentemente?
C) _ A ciência meu amigo, a ciência explica qualquer coisa.
D) _ Bem, me recuso agora a discutir tal afirmação. Quero me ater aos fatos como narrados pelo nativo.
C) _ Claro! Em frente.
D) _ O capelão trazia pendurado no pescoço os símbolos de sua fé: Crucifixos, cordões, um cajado onde se apoiava tendo no alto a efígie de um homem agonizante e, nas mãos, aquilo que os nativos identificaram como o talo de bananeira não passando de um grosso volume da Bíblia dos cristãos. De pronto estabeleceu-se um vínculo baseado na lenda dos nativos, lenda sabiamente aproveitada pelo capelão. Ele apresentou-se como o enviado, reorganizou a estrutura da aldeia, se intrometeu nas dificuldades dos nativos utilizando-se dos parcos recursos que possuía na cura de homens e mulheres acometidos por doenças, combateu valorosamente as epidemias e criou o mínimo possível de proteção por meio da conscientização sanitária. Com inúmeras dificuldades fez ver aos chefes da tribo a necessidade das mudanças que propunha e ainda teve tempo para criar escolas utilizando-se do dialeto deles. Sem ferir a vaidade de seus curandeiros angariou a confiança de todos.
C) _ Eu sempre soube da atitude guerreira desses povos...
D) _ Também esse o era. Tanto que por diversas vezes suas flechas, suas lanças, as setas embebidas nos venenos letais haviam afastado de suas fronteiras as hordas assassinas daqueles que em nossa pátria seriam heroicamente considerados bandeirantes, desbravadores, conquistadores...
C) _ Percebo sua intenção de separar o trigo do joio. Quer me fazer crer que a intenção dos jesuítas diferia do propósito de seus amigos colonizadores?
D) _ Conto o que ouvi!
C) _ Sim, sim... Mas, apenas me esclareça se sua ingenuidade o leva a supor a completa separação entre a religião e a dominação. Não é evidente que o cristianismo tenha usado a força por esses séculos incontáveis para a escravidão do ser conquistado?
D) _ Antes me responda, você leu o relato à viagem de Bougainville?
C) _ Sim!
D) _ Ingenuamente acreditas que durante séculos os cristãos tenham se ocupado apenas em aprisionar seus conversos? Será que os benefícios incontestáveis da caridade deste capelão não constituem por si só um libelo contra tais suposições arbitrárias? Creio que há de ser no mínimo desonesto aquele que medir o cristianismo de acordo com o campo de visão de um acéfalo. Seria mais justo se usasse o recurso do ciclope.
C) _ Mas você não contesta a tirania dos governos chamados cristãos?!
D) _ Nem tampouco a tirania dos verdadeiros cristãos. Afinal quantos professam hoje uma fé que não existe, um compromisso que não assumiram. A falência da instituição reside no discurso descompromissado de seus constituintes. No entanto tais problemas jamais deixarão de existir enquanto o homem for homem.
C) _ Aí vem você com a ladainha do pecado original!
D) _ Nunca! Sei que seria de todo desnecessário. Apenas desejo assegurar que o relato de Bougainville generaliza fazendo uso de uma desonestidade consciente. Entretanto, mesmo achando-o desonesto e generalizador, sei reconhecer as deficiências presentes nesse meu cristianismo.
C) _ Não esqueçamos também que você está fazendo uso do relato do capelão. Provavelmente um manípulo da religião.
D) _ Pouco provável, entretanto...
C) _ Mas me diga, há alguma similaridade na história desse homem, algo mais que nos lembre, por exemplo, da figura imponente do ancião?
D) _ Não muito; de passagem me recordo da conversa inicial entre o capelão e seus hospitaleiros silvícolas. É fato que o receberam com festa, cheios daquela admiração ingênua tão presente nos olhos das crianças. Com suas garrulices acercaram-se dele tocando-o, provando-o, beliscando a pele clara e a vestimenta escura. Após o identificarem como o suposto mensageiro da lenda, houve uma espécie de reunião, um círculo formado ao redor do fogo, e, enquanto se aqueciam o principal deles pôs-se a falar: _ “Nós não tínhamos deuses nem sacerdotes. Crescemos todos às margens dos grandes rios e vivíamos sob a liberdade das estrelas. Quando a chuva regava a terra elevávamos nossos pensamentos a uma única divindade, àquela que supúnhamos estar acima de nós. Quando o sol surgia iluminando as folhas, fazendo brilhar nos cachos os frutos era a essa mesma divindade que agradecíamos num movimento espontâneo de braços e pernas. Foi quando chegaram à ilha os primeiros caçadores munidos de suas enormes embarcações, carregados de espelhos d’água e hastes falantes. Eles subverteram nossas idéias com seus presentes e, em troca disso, levaram nossas pedras e as riquezas que nem sabíamos serem riquezas. Mas quando tentaram se apossar de nossa liberdade obrigando-nos a toda sorte de trabalhos então nos revoltamos. Muitos dos nossos foram massacrados, mas prevaleceu nosso espírito guerreiro. Agora que queremos ouvir-te, a quem nos apresentas?” Respondeu o capelão cheio da mais respeitosa reverência: _ “Àquele a quem vocês adoravam sem o saber. Ao Deus único criador de tudo que existe no céu, na terra e sob a terra.”
C) _ Eis aí a fórmula degradatória dos povos!
D)_ Sim, como queira, mas a despeito de seu ímpeto, permita-me prosseguir.
C) _ Prossiga.
D) _ Em geral o que ocorreu foi uma completa reformulação das leis e costumes daquele povo.
C) _ Leis e costumes? Eles não disseram que viviam livres pelas florestas?
D) _ Sim, mas a liberdade não suprime a necessidade da ordem e, como consegui-la senão pela manutenção de leis e costumes?
C) _ À palavra lei entendo um conjunto de regras, preceitos de ordem moral talvez, mas e aos costumes? Qual o significado? Seria o mesmo de tradição?
D) _ Não com a mesma profundidade de significados, mas por que não? Os costumes na sociedade são como um freio para as paixões aviltantes que podem desvirtuar o cenário estabelecido. Entretanto isso me parece também pouco atraente visto serem os costumes apenas reflexos do gosto geral e, então, mutável. Tradição tem um sentido de coisa duradoura. O que queria destacar era a suscetibilidade dos silvícolas na aceitação das propostas do capelão. Eles já eram detentores de leis próprias que ditavam as regras para o bem comum.
C) _ Por exemplo...
D) _ Leis a respeito da união dos sexos, educação das crianças, vivência na tribo, trabalho e etc.
C) _ Leis no sentido lato da palavra?
D) _ Que, no entanto não deixam de ser leis, ou contestas?
C)_ Claro que não. Tudo que regula ou controla a vida de alguém forçosamente é uma lei. O cristianismo com a mais perversa representação delas devido ao recrudescimento das investidas.
D) _ Bom, a despeito de suas considerações finalizo. A lei cristã propagada pelo capelão deu mostras de plena aceitação a ponto de pacificá-los.
C) _ Aí está o ponto. Antes que continues deixe-me concluir sua história. Os nativos foram pacificados, os exploradores se apropriaram da ilha e os escravizaram, certo?
D) _ Exato!
C) _ E ainda tentas apresentar isso como triunfo ou ponto positivo do cristianismo?
D) _ Nem como triunfo, nem como ponto positivo, apenas como algo que devia ocorrer. A mensagem cristã jamais teve a intenção do confronto armado, nunca se preocupou com a defesa física em detrimento da espiritual. Ainda que alguns a julguem como um conjunto de regras obsoletas ela se presta também à manutenção da vida alheia. Imagine o que significa isso? Um grupo de extrema hostilidade repentinamente abandonando as armas, valorizando mais a vida do outro que a sua própria? Mas, se falas em triunfo, bem, admitamos que ele existiu.
C) _ E quanto a Bougainville? Onde aparece nessa história?...
D) _ Segundo Aoturo foi ele o destruidor da aldeia. Derrubou as cabanas, ateou fogo às plantações erigidas pelo capelão em benefício dos nativos, violou a integridade física e emocional de todo um povo por meio do estupro de suas moças, a escravidão dos jovens e a morte das crianças de colo. Depois levou Aoturo em suas viagens apresentando-o como uma espécie de prêmio. Nunca o deixavam abrir a boca durante essas viagens alegando estar ele desacostumado à cultura de outros povos. Quando se atirou sobre uma européia tentando transmitir-lhe suas desgraças pessoais foi enxotado feito um cachorro e disseram coisas sobre ele que não condiziam com a realidade.
C) _ Estranho isso...
D) _ O quê?
C) _ Como será que ele pôde compreender o que falavam dele?
D) _ É provável que a permanência no meio de tais homens o tenha aproximado bastante daquele idioma.
C) _ Considero esse nativo polido.
D) _ E eu, muito mais esse capelão e seus esforços missionários.
C) _ Entrementes o abandonaram aqui nessas praias...
D) _ Sim, foi posteriormente açoitado e abandonado durante uma daquelas viagens de exploração. O capelão, coitado, teve um fim mais drástico. Instigado a abandonar a fé, e não o fazendo, foi executado após ter as mãos e os pés cortados a golpes de facão.
C) _ De qualquer modo o fim para ambos. O inexorável instante derradeiro em mãos de homens cruéis.
Muito criativo! Se me contassem que tinha sido escrito nos anos 40, eu acreditaria!
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